Adozinda - V de Volta
Sofia Ester
A A A A
 
 

Capítulo II

São sete e meia da manhã. A lua pálida, quase transparente, está prestes a despedir-se. Junto a um frágil poste encimado por uma tabuleta ferrugenta e oscilante Zulmiro aguarda. O jovem mal dormira durante toda a noite. A sua mente entusiasmada conjeturava, fazia planos e recusava a abandonar-se à sonolência. Mal o despertador tocou, quase saltou da cama, engoliu um copo de leite à pressa, vestiu-se e saiu de casa a correr. De pouco lhe valeram as pressas. Após quinze minutos de espera, aqui estava ele, de pé, junto ao poste, encolhido de frio, o casaco abotoado, as mãos metidas dentro dos bolsos.

No dia anterior, tinham-lhe dito na papelaria que, junto àquele bendito poste, passava um autocarro que o levaria diretamente ao seu destino, o Saldanha, no centro de Lisboa. "É o 313. O 313 põe-no lá num instantinho!", afiançara a senhora que atendia na papelaria com um ar dogmático e categórico. Confiante, sem ousar suspeitar da credibilidade da funcionária da papelaria, sempre tão competente no que se referia a tirar fotocópias, uma autoridade em encadernações de argolas, Zulmiro aguardava, expectante. Só que, os quinze minutos transformaram-se em vinte, e dos vinte chegou-se aos vinte cinco. Zulmiro estava próximo de atingir a meia hora de espera. Já mal sentia os dedos dos pés. De vez em quando, dava uma volta ao poste, ou batia com os sapatos no chão, mas isso pouco o aliviava. A sua respiração condensava-se em vapor na frente dele. Olhava ansiosamente para a esquerda. Onde estaria o prometido 313? O olhar de Zulmiro era tão intenso que dir-se-ia que ele tentava conjurar o autocarro só com a força da sua mente.

Ajeitou os óculos tentando perscrutar o fundo da estrada. Aquilo lá ao fundo, aquele ponto? Seria a salvação? Seria o autocarro? Pena hoje estar um nevoeiro tão cerrado. Não se conseguia ver praticamente nada! Zulmiro inclinou-se para a frente, ansioso. Focou os olhos...

Não! Afinal era só um camião. Ainda não era desta!

À medida que a meia hora de espera se aproximava perigosamente, a dúvida ia-se instalando na mente de Zulmiro, devagarinho, silenciosa. Pois, não era sua intenção desconfiar da funcionária da papelaria! Sempre tão honesta nos trocos! Mas é que já lá ia meia hora... Será que a boa senhora não se teria enganado? Afinal, errar é humano... Pena que, a esta hora da manhã, a papelaria ainda estivesse fechada. Assim, não havia forma de confirmar, de pedir uma segunda opinião. Como estava sozinho na paragem, também não podia pedir informações a outras pessoas.

À medida que esperava, Zulmiro não podia deixar de achar o quanto a sua situação era injusta. Injusta? Sim, injusta! É que, do lado oposto da rua havia outro poste, igualmente frágil, com a tabuleta igualmente enferrujada e oscilante no cimo. Um poste em tudo igual ao seu poste. Sim porque, após mais de meia hora de espera, Zulmiro já considerava aquele poste como um pouco seu. Ora, pelo poste do outro lado da rua tinham passado, durante o tempo que Zulmiro estivera à espera, três autocarros. Três! E para ele nada! Não era justo, pois os postes eram exatamente iguais. Que direito havia de o outro poste ter mais autocarros do que o poste dele?

Do outro lado da rua, de cada vez que chegava um autocarro, as pessoas na fila exibiam uma expressão aliviada. E, de passe ou bilhete em punho, lá iam eles subindo para o veículo, triunfantes, sorridentes. Do seu lado, Zulmiro gelava. Iria chegar atrasado à V de Volta e Zulmiro detestava chegar atrasado. Por isso, além de gelado, começava a sentir-se ansioso. Ainda não estava muito ansioso. Afinal, aquilo era uma paragem. O bendito do autocarro, ou melhor, o maldito do autocarro, mais tarde ou mais cedo, havia de passar. Isso era inevitável, tão inevitável como o nascer do dia ou como a passagem das estações.

Por esta altura, Zulmiro estava à beira de atingir os quarenta minutos de espera. Foi então que, de repente, como um clarão, uma ideia passou pelo seu espírito. E se aquele poste fosse um logro? E se aquele poste tivesse sido ali colocado por uma mente perversa para enganar incautos? Levou a mão ao poste e abanou-o. Com um pouco mais de força poderia facilmente arrancá-lo do chão. Claro, não o iria fazer. Não se iria vingar no poste. Isso seria ser mau cidadão e Zulmiro era um bom cidadão, daqueles que separa o lixo em vários pacotes para os colocar no ecoponto, daqueles que atravessa nas passadeiras, daqueles que entrega a declaração do IRS dentro do prazo. No entanto, mesmo os melhores cidadãos sabem que existem outros que não o são. Existem por aí cidadãos perversos, cidadãos capazes de tudo, capazes, enfim, até de arrancar postes de paragens de autocarros e de os espetar noutro sítio de forma a enganar e prejudicar a vida dos inocentes. Seria Zulmiro uma vítima dessa situação? Se calhar, era por isso que estava sozinho na paragem. Porque os outros já sabiam! Aquilo era um poste falso, uma artimanha... E quanto à funcionária da papelaria? Pobre senhora, se calhar, tinha sido tão enganada quanto ele! Estava iludida.

Quarenta minutos de espera! Aproximavam-se os quarenta e cinco! A ansiedade de Zulmiro subia, aumentava. Não aguentava mais. Por esta altura, resolveu tomar uma resolução. Atravessou a estrada e dirigiu-se às pessoas que aguardavam no outro poste. Ia perguntar-lhes. Se aquele poste fosse falso elas haviam de saber.

Zulmiro já estava do outro lado da rua e tentava agora escolher, entre as pessoas que aguardavam na fila, a que parecesse mais inteligente e conhecedora de autocarros. Foi então que, disparado como uma seta surgiu, lá ao fundo, o prometido 313. O coração de Zulmiro deu um pulo. Atirou-se para a estrada sem olhar, os seus olhos, o seu espírito, já estavam no autocarro. Estava perto, perto, perto!... Foi então que sentiu uma pancada nas pernas. Algo o atirou para o alcatrão. Pneus guincharam no asfalto, o ar húmido e puro da manhã foi contaminado por um cheiro enjoativo a borracha queimada. Zulmiro nem percebeu bem o que lhe tinha acontecido. Só depois de alguns segundos de reflexão é que constatou que quase tinha sido atropelado.

Um senhor baixo, gordinho, escarlate de ira e nervosismo, uma das veias a pulsar ameaçadoramente na testa, saltou da viatura.

- Oh jovem! O que é que lhe deu na cabeça para se atirar assim para a estrada?! - berrou.

Uma senhora idosa, que aguardava o autocarro, de malinha segura nas mãos gordinhas, com uma florinha presa à lapela do casaco aproximou-se. Esta foi mais compreensiva, mais humana.

- Magoou-se? - questionou numa voz cuidadosa. - Veja lá não tenha alguma coisa partida.

Zulmiro levantou-se. Sentiu as pernas, os braços. Parecia que tinha sido só o susto. Desta tinha escapado. Isso era a parte boa. A parte má é que, entretanto, o seu autocarro, o 313, tinha-se afastado. Nem sequer já se via. Tinha prosseguido o seu caminho, impassível, indiferente ao facto de Zulmiro quase ter morrido por ele.

O senhor nervoso, após constatar que o acidentado se movia com à-vontade, voltou a meter-se dentro do carro com brusquidão. Antes de fechar a porta resmungou:

- Jovem estúpido! Logo hoje que estou atrasado para o trabalho. Raios!

Quanto ao pobre Zulmiro, restava-lhe voltar ao ponto de partida e aguardar junto do seu poste. "Tenho apenas de ser paciente. Já quase fui atropelado. A situação não pode piorar mais", pensou para si próprio tentado tranquilizar-se. Zulmiro estava certo no que se referia à necessidade de ser paciente. Estava errado no que se referia à possibilidade da situação piorar. É que o dia estava nublado, húmido e, lentamente, o céu começou a derramar algumas lagrimazinhas tímidas. Pouco depois, eram gotas grossas. Zulmiro sentia-as, caindo pesadamente sobre a sua cabeça. A seguir, chovia torrencialmente, e Zulmiro não tinha guarda-chuva. Tinha-se esquecido dele, na pressa da saída. Afinal, hoje era um dia muito importante. Hoje era um dia muito importante e o tempo passava. Que angústia!

Chegava agora o momento de tomar uma decisão difícil: permanecer junto ao poste e arriscar-se a apanhar uma pneumonia ou resguardar-se debaixo do toldo de um café. Só que o café ficava a uma distância muito razoável. Se o autocarro passasse, provavelmente, Zulmiro não conseguiria chegar à paragem a tempo de o apanhar.

Estava Zulmiro debatendo-se com as suas dúvidas quando algo surge por entre as cortinas de chuva intensa. Não era o autocarro. Era uma jovem, pairando suavemente numa vassoura. O seu vestido preto ondulava ao sabor do vento. Devido ao frio, trazia ao pescoço um longo cachecol em tons de rosa e vermelho. Os seus pés, calçados em sapatos de ténis dourados e prateados, oscilavam a poucos centímetros do chão.

- Olá Zulmiro. Resolvi passar por aqui para ver se sempre aceitavas a minha boleia.

Zulmiro não apreciava a condução de Adozinda, mas se optasse por continuar a aguardar pelo autocarro arriscava-se a apanhar uma pneumonia. Não é que ele duvidasse das capacidades de aviadora de vassoura mágica da jovem. Sabia que Adozinda era perita. E era esse justamente o problema. Meter-se numa vassoura com Adozinda era o mesmo que meter-se num carro de corrida conduzido por um piloto de Fórmula 1: seguro, mas perturbador. Zulmiro não gostava de velocidades nem de pressas.

- Vá! Decide-te! Não podemos chegar atrasados à V de Volta! - a jovem pressionou-o. Tinha a impaciência característica dos dezasseis anos de idade.

Resignado, e embora estivesse com um mau pressentimento, Zulmiro subiu para a vassoura e os dois elevaram-se aos céus. A aviadora subiu acima das nuvens e a chuva parou. O Sol ofuscou-os. Abaixo deles, a cidade tinha desaparecido. Até onde a vista alcançava, só viam um imenso tapete fofo e macio de algodão.